A BABA DO ÓDIO QUE
SE
DERRAMOU SOBRE O MORTO
É possível, com
raiva, escrever um poema, compor uma música. Até Deus,
se for Ele mesmo o responsável por tudo, na obra suprema de 6
dias, descansou no sétimo, talvez, com a raiva sublime de quem, com
infinito poder, sentisse , insatisfeito, que poderia ter ido muito
além da perfeição da flor , do beija-flor, das galáxias , da
luz.
Raiva e amor tantas
vezes se misturam, e nessa ambivalência procriam coisas e sensações, estas, por
vezes até, e surpreendentemente, de prazer imenso.
Raiva é sentimento
humano, diferente do ódio , instinto animal, que tudo contamina, corrói,
aniquila, apodrece.
Quem agasalha o ódio envenena
a alma e carrega o hálito nefasto, prenuncio de morte e destruição.
A Espanha conheceu esse hálito
terrível , e se foi despedaçar no fratricídio gigantesco que
durou 3 anos 8 meses e 15 dias.
Quando a política se
desencaminha, é oportuno recordar para aonde levam os labirintos
sinistros que o ódio percorre.
Na tragédia imensa que foi a
Guerra Civil Espanhola, o primeiro tiro aconteceu após uma longa semeadura
de ódios.
Um mutilado de guerra,
a quem faltavam uma perna um olho , um braço e parte dos dedos da mão restante,
exibia-se como símbolo heroico, porque ainda vestia farda e espalhava
terror. Chamava-se Millan Astray , era general. Urrou durante uma
solenidade na Universidade de Salamanca: ¨Abaixo a cultura , abaixo a
inteligência, viva a morte. ¨ O reitor era Miguel Unamuno,
ligado à direita, mas um humanista, autor de O
Sentimento Trágico da Vida. Ele interrompeu o general: ¨O senhor
não é apenas um mutilado físico, é também um aleijado moral. Nesse templo
do saber não há lugar para o seu ódio.¨ Unamuno foi condenado à
morte.
Quando, num velório, um morto
é insultado como aconteceu ao ser velado o corpo de Jose Eduardo Dutra,
fica-se a duvidar do que acontece neste Brasil, onde Sérgio Buarque
de Holanda exaltou o povo que era cordial.
O que estaria acontecendo
aqui, entre nós sergipanos, que há muito tempo convivemos
civilizadamente, mesmo nos instantes intensos da luta política, e agora
assistimos, também, o derramar da baba do ódio contra um morto, que não era
sergipano, mas aqui viveu, aqui foi eleito senador , e
dignificou o mandato que lhe conferimos em eleição livre, democrática e limpa.
O que fez Zé Eduardo que foi presidente da PETROBRAS , mas não enfiou, como
outros o fizeram, as mãos ávidas nos cofres da empresa ? O que fez ele de
tanto mal para ser o alvo de um ódio virulento?
Um morto, não pode falar mais em defesa da sua biografia insultada.
No caso de Zé Eduardo a sua biografia permanece inalterada porque ele a
construiu com decência. Mas, quem derrama a baba azeda do ódio, tem ,
se for jovem, uma biografia a ser construída. E não se conhece,
felizmente, uma só biografia manchada pelo ódio, que tenha merecido, pelo
menos, a condescendência tolerante da História.
No período mais
repugnante da ditadura civil-militar a inteligência canhestra dos próprios
marqueteiros do regime inventou a frase: ¨Brasil, ame-o
ou deixe-o ¨. O estilo era deplorável e o propósito abjeto. Criava-se a
idéia nefasta de que era preciso distinguir duas categorias na população: a dos
bons e a dos maus brasileiros.
Não foi fácil desmontar
a máquina trituradora do autoritarismo. E aqui, há uma aspecto que costuma ser
desprezado quando se afirma que a ditadura caiu, vencida pelo
combate de uma oposição corajosa, que desafiou as prisões e a morte.
Houve, sem duvidas, essa oposição corajosa, mas, sem que no âmago da
ditadura ocorresse o surto de racionalidade que fez os seus próprios
integrantes entenderem que chegara a hora de renderem-se aos argumentos da
democracia, tudo seria mais difícil. Nos quartéis se fez o
indispensável e penoso trabalho de desinfecção das estruturas contaminadas pelo
ódio.
Uma nação que conseguiu
livrar-se, sem traumas irrecuperáveis, de duas ditaduras que
geraram um pesado clima de odiosidades, não pode permitir que num
regime de plena democracia a disseminação do ódio a transforme, agora, numa
desprezível rinha de galos furiosos.
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