LA SE FOI O NOSSO
ANJINHO BARROCO
Como poeta, Araripe Coutinho era airosamente moderno,
inovador desafiante de métricas e convenções. Sua poesia hermética,
escatológica, carnalmente construída,
era, ao mesmo tempo, ascese e calvário de um ser que transubstanciava o
martírio interior na esfuziante
determinação de nunca parecer triste. Ele era afável, extremoso na afetuosidade que demonstrava aos
amigos, e ardiloso também. Nos últimos anos Araripe se
foi revelando além do poeta, e surgiu o escritor, o repórter, o comentarista
perspicaz do cotidiano.
Poderia ter sido imortal na nossa Academia, mas, entre tantos
vetustos adereçamentos, como se sentiria o poeta que se fez anjinho barroco , esgueirando-se lépido, quanto lépido pode ser
um obeso, para finalmente despir-se, emoldurado por lantejoulas floridas,
deixando-se fotografar assim, tão despojado, em plena circunspeção do Palácio
Museu?
Déda o nosso governador, até quase abespinhou-se com o atrevimento da nudez
ao lado dos bigodes e cavanhaques dos próceres sisudos que na República nos
governaram, mas, logo deixou-se convencer
pelo argumento sempre sensível a um intelectual de que a irreverência também
movimenta a roda da vida.
Araripe era assim, insolente na nudez desafiadora, ajoelhadamente místico diante do sublime e da fé.
Na Missa do primeiro ano da morte de Déda lá estava ele,
envolvido numa echarpe de seda, translúcida, a declamar um poema e a derramar lágrimas. Dias depois, na festa de lançamento da Agenda
de Thais Bezerra, Araripe quase
saltitava, parecia um pássaro a ensaiar um vôo, e ouviu de
um jornalista: ¨Ontem, numa
livraria, li um pequeno livro de poemas . Só depois verifiquei que o autor era
Araripe. Você é daqueles poetas que
criam mundos quase inacessíveis para quem tentar desvendá-los. Sua poesia nunca será popular, mas, daqui a
muito tempo haverá reedições, e os
críticos construirão sua glória póstuma. ¨
Infelizmente não houve o ¨muito tempo ¨. O anjinho barroco
alçou vôo. Sua amiga artista, escritora
, também poeta Antonia Amorosa, sentia,
na cerimônia do adeus, que o anjo por ali esvoaçava.
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