A HISTÓRIA VIVIDA, A HISTÓRIA RELEMBRADA
A HISTÓRIA VIVIDA, A HISTÓRIA RELEMBRADA
Era uma sexta-feira de Carnaval. O dia, 20 de
fevereiro. O ano, 1976.
O Brasil iria viver o seu décimo segundo carnaval
desde que a ditadura começara .
O jornalista Elio Gaspari escreveu o mais completo e elucidativo
trabalho sobre o período da chamada Revolução de 1964. Ele o dividiu em 4
fases. Intitulou a primeira delas de
ditadura envergonhada. Naquele carnaval vivíamos o fim
do segundo período, o da ditadura escancarada.
O quarto presidente do ciclo militar, general Ernesto Geisel, acenara com uma
distensão que definiu como lenta,
gradual e segura. Nos grandes centros a
mordaça nos veículos de comunicação já havia sido parcialmente retirada. Na
periferia, como aqui em Aracaju, por conveniência ou medo, a mordaça
permanecia.
No núcleo do poder confrontavam-se duas tendências: a moderada
que seguia a estratégia de cauteloso
retorno à democracia e restabelecimento
do poder civil, tudo sob a tutela militar, e a outra a extremada de
direita, feições marcadamente fascistas, representada no Ministério do Exército
pelo general Sílvio Frota, e na
Ministério da Justiça por Armando Falcão.
A
chamada ¨linha dura ¨andava insatisfeita, quase rebelada
contra o andamento da distensão política, o tímido retorno da liberdade de
expressão. Em janeiro de 76 o general Sílvio Frota dirigia ao Ministro da
Justiça um ofício insolente,
Aviso 13/4, na linguagem castrense,
que assim começava : ¨Há dois ou três dias venho pedindo a Vossa Excelência enérgicas providências
contra a imprensa e, em particular, a de São Paulo, que, através de artigos
violentos, injustos e revoltantes, tem procurado lançar o Exército contra o
governo e desmoralizar um dos mais insignes
Chefes, movimentado, por necessidade de serviço, em virtude de decisão
presidencial. Não obstante as providencias que, estou convicto V. Exa tomou,
esta campanha difamatória prosseguiu hoje no jornal FOLHA DE SÃO PAULO, agora
em termos ultrajantes ao Exército.¨
O ¨ insigne
chefe¨ que a imprensa estaria a
desmoralizar, segundo o rude e indisciplinado texto do Ministro do Exército,
era o general Ednardo D`Avila Mello, nascido em Sergipe, que fora exonerado do
Comando por determinação do presidente
Geisel após as torturas que causaram as mortes
do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho em dependências do II Exército.
A Operação Cajueiro começou em Aracaju naquele início
de tarde da sexta-feira, 20 de fevereiro. Três dias antes, chegaram ao quartel do 28 BC
os torturadores comandados pelo
Tenente-Coronel Oscar Silva. O
comandante, coronel Osman de Melo Silva
foi afastado, da mesma forma quase toda a sua oficialidade e sargentos, para
que só os esbirros desumanos
transformassem um quartel do Exército Brasileiro numa masmorra onde todos os vilipêndios ao gênero humano
foram permitidos.
Estudantes, operários, servidores públicos,
professores, advogados, agrônomos, foram sequestrados nas ruas, nas suas casas,
nos locais de trabalho, e levados para a prisão. Tratados como se fossem
perigosos marginais, eram supostamente
filiados ao proscrito Partido Comunista
Brasileiro, uma organização de esquerda que sempre se manteve afastada da luta
armada.
O braço repressor do general Fiuza de Castro, comandante da Sexta Região Militar, chegava a Sergipe como parte
de uma estratégia montada no Ministério do Exército para lançar a ¨linha dura ¨militar contra o
presidente Geisel , frear a distensão
política e levar ao poder o general Sílvio Frota.
Aracaju, pequena capital nordestina,
tornava-se palco do choque entre duas concepções de poder, a autoritária, da maior parte das forças armadas, e a
totalitária, abrigada nos bunkers
radicais conquistados pela linha dura,
tendo como mais poderoso aliado o
próprio Ministro do Exército, também aspirante à sucessão de Geisel.
Quarta-feira passada, dia 20, 37 anos já nos
separavam do inicio da Operação
Cajueiro. Reuniram-se para um jantar o vice-governador Jackson Barreto, o
ex-prefeito de Aracaju , João Augusto
Gama, o Secretário de Comunicação do Governo, Carlos
Cauê, Rosalvo Alexandre ,
Marcélio Bonfim , esses dois últimos, símbolos da resistência, presos e
torturados em 76. Havia ainda um
jornalista contemporâneo dos fatos.
Sobre
aquele último arreganho violento da ditadura em Sergipe existem ainda
pontos obscuros a identificar e esclarecer.
Jackson, na época deputado estadual, e um dos
mais visados pela repressão por ter sido eleito recebendo votos do proscrito
Partido Comunista, e por ser, também, uma
liderança popular em plena ascensão, foi por várias vezes levado a depor no
quartel. Havia, segundo ele, o claro propósito de exagerar a influencia das
esquerdas no processo político,
construir o fantasma ameaçador da
rearticulação comunista e ganhar o apoio da sociedade para um golpe militar
patrocinado pela linha dura. No quartel,
Jackson ouviu de um major a advertência ríspida: ¨Deputado, aqui se fala o que
se quer e também o que não se quer falar ¨.
Jackson atravessou aquele período tenebroso
enfrentando o risco iminente de cassação do seu mandato, e assim continuaria nos embates seguintes pela
redemocratização do país, até o final da ditadura em 85. Aquela história de
vida, e currículo político, lembrados e
exaltados pela presidente Dilma, ao saudar Jackson durante a inauguração da
ponte Gilberto Amado.
Naquele jantar não havia somente
reminiscências, mas, também o propósito
de clarificar episódios relacionados à
Operação Cajueiro, fazendo-se a montagem
precisa da motivação, da sequencia dos
fatos, da cadeia de comando, desde os tapetes das salas de quarteis generais, ao chão encardido da
masmorra onde escorria o sangue dos torturados. Essa, segundo Jackson Barreto, será uma tarefa para a
Comissão da Verdade. Sem que se pense em revanche ou execração de quem quer que
seja, mas que se construa a História com os capítulos reais e a responsabilidade exata de cada
protagonista. A História não pode ocultar ou fugir da realidade, por mais
repugnante que ela seja.
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