OS CADÁVERES DA ARGENTINA
A Argentina tem adoração por cadáveres. Literalmente.
A necrolatria chegou ao ponto de mandarem embalsamar uma morta, que se
tornou espécie de símbolo e de culto
nacional. Não fossem as sempre imprevistas peripécias da vida política, das
quais a Argentina é pródiga, talvez até hoje, sessenta anos após a morte, ainda
estivesse Evita Peron dentro de uma urna
envidraçada sendo exibida e tornando-se
objeto de veneração ou de curiosidade, tal qual foi o cadáver de Lênin, enquanto esteve à mostra num soturno mausoléu erguido na
Praça Vermelha em Moscou. Deposto, Juan Domingo Perón levou consigo o cadáver que foi
confiado ao Vaticano, enquanto ele, o ex-ditador, ia morar em
Madrid. Retornando ao seu país, depois
de terem sucessivos generais ditadores constatado que sem Perón a
Argentina se tornava ingovernável, Juan Domingo Perón disputou uma eleição que venceu folgadamente.
Com ele, chegou de volta o cadáver de Evita, e veio também a nova mulher,
Isabelita, uma dançarina da noite que o ditador exilado teria encontrado numa
casa noturna, bem próxima da Zona, que
não era exatamente aquela, (vejam que
há um Z maiúsculo) embora bem assemelhada, porque era a Zona do Canal do Panamá, controlada pelos americanos. Perón morreu, e ficaram o cadáver de Evita e um quase
cadáver político, o da sua mulher Isabelita, que era a sua vice e tornou-se
presidente. Isabelita, aconselhada pelo
vidente seu conselheiro, e dizem, também amante,
fez o que o bruxo mandou, colocou o cadáver em local de muito destaque
para que outra vez os argentinos viessem, em permanente procissão, a prestar-lhe homenagens. Evita tornou-se uma
quase religião, embora o Vaticano houvesse negado o pedido feito por Perón para
que a canonizassem. Mas, enquanto isso,
já havia um outro cadáver, o do general Perón, ao qual os
argentinos conferiram a estranha
autoridade de continuar influindo nos destinos da nação. Ele tem sido o
morto governante.
As peripécias do cadáver de Evita não pararam
por aí. Quando os militares expulsaram
Isabelita da Casa Rosada e lá enfiaram as suas botas, logo retiraram o
cadáver de Evita, que andou vagando
pelos quarteis, bases aéreas e navais. Existe a estranha estória de um militar
que recebera a ordem de esconder o cadáver em sua casa. Colocou a urna num quarto, à noite acordou com um barulho. Dirigiu-se de
arma em punho até aonde estava a múmia de Evita, e ao seu lado notou
um vulto esbranquiçado, que tomou como sendo de um fantasma,
e então disparou contra ele
vários tiros. O vulto caiu. O militar acendeu a luz e viu no chão a sua
esposa que se esvaia em sangue e apenas balbuciou: - Eu queria ver Evita bem de
perto.
Hoje, quando é assinalada a data da sua morte,
sessenta anos depois, Evita está no
Cemitério de La Recoleta. Alí os
argentinos fazem ritualmente a sua prática
de reverencia aos mortos. O cemitério é
quase um símbolo nacional, embora pelas laterais dos seus elevados muros fervilhe a mais animada das
noites boêmias buenosairenses. Talvez, a necrolatria explique porque bares e boates
estão assim, tão aconchegados ao
cemitério.
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