sábado, 14 de abril de 2012

A PENHORA DA CACHORRA BALEIA

O Brasil atravessou várias fases da sua história cada uma delas caracterizada por um tipo peculiar de submissão a interesses que não eram exatamente os do povo brasileiro. Houve alguns desses períodos deprimentes da vida nacional em que chegamos mesmo a nos transformar numa espécie de quintal onde imperava a rapinagem  sem limites. Fomos colônia, e sobre essa condição subalterna Portugal deitava e rolava, daqui, levava tudo, e nos agrilhoava  através de uma legislação concebida para   impedir-nos  de instalar indústrias, de manufaturar o que aqui produzíamos.  Plantávamos cana, algodão, depois o café, sem poder fabricar o arado, a enxada, que tínhamos de comprar da Inglaterra, que, por sua vez, fazia da metrópole lusitana o seu quintal no continente europeu. Nos livramos de Portugal e  logo abrimos os portos, mas com exclusividade, só para os navios ingleses. Finda a Segunda Grande Guerra, o quintal americanizou-se. Em 1964, depois do golpe militar, quando os interesses norte-americanos mais solidamente fincavam pé no quintal, chegando a Washington como novo embaixador brasileiro, o general Juracy Magalhães  fazia a jornalistas uma desastrada afirmação que dava o rumo da nossa nova diplomacia desavergonhadamente submissa: ¨O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil¨.
Agora, finalmente, deixamos de ser o  devassado quintal onde os gringos faziam seu despudorado festim de bucaneiros,  escapamos da humilhação de não ter soberania sobre as nossas próprias riquezas,   mas ainda precisamos reagir  para que jamais nos tratem como se  continuássemos sendo quintal esquecido de um dono leniente. A resistência agora  é contra a  insânia argentária dos banqueiros, tanto os nacionais como os estrangeiros. Os lucros que os bancos exibem, sejam eles privados ou estatais, resultam de um sistema perverso, onde a força especulativa do dinheiro subjuga o potencial produtivo da economia brasileira.  A presidente Dilma, enojada, enfiou o dedo na ferida pustulenta, e exigiu a baixa dos  juros extorsivos,   o fim da agiotagem do mafioso sistema financeiro. A determinação da presidente  começa a dar resultados. Banco do Brasil e  Caixa Econômica  já baixaram os juros que cobram,  reduziram a extorsão   nos cheques especiais e cartões de crédito.  A banqueirada privada sentindo os efeitos dessa medida no mercado,  vai também reduzir os juros para deter a revoada dos clientes.
Domingo retrasado, a cidade de Nossa Senhora da Glória foi palco, no sertão sergipano, de um recorrente drama dos produtores rurais esmagados pela  criminosa indiferença dos bancos oficiais que liberam  crédito sob condições leoninas,  fazendo crescer astronomicamente o montante da dívida, como se ainda vivêssemos a ciranda inflacionária que para os agiotas institucionais ainda não acabou. Em Glória, convocados pelo deputado federal  pastor Heleno Silva e pelo deputado estadual João Daniel, aglomeraram-se mais de mil pequenos e médios produtores, na sua maioria com as propriedades ameaçadas de irem a leilão. Enquanto os países  europeus, os Estados Unidos, a China, o Japão, a Austrália, estimulam os produtores rurais com generosos subsídios, aqui, eles  recebem a visita  indesejada dos oficiais de justiça que fazem as penhoras ou anunciam os leilões.
O deputado pastor Heleno Silva gravou, para levar à Brasília, o clamor dos sertanejos desesperados. Houve uma mulher, uma viúva, fazendo a chocante revelação: quando foi tratar do paupérrimo inventário do marido, descobriu que o espólio já pertencia a um banco oficial,  perverso, ao ponto de caprichar no requinte da penhora de um cavalo e uma burra. Chegará brevemente a vez do jumento.
Graciliano Ramos, talvez o escritor brasileiro mais impregnado de nordestinidade, conta, em Vidas Secas, o sacrifício da cachorra Baleia, vivente companheira de uma família habitando uma tapera no chão ressequido das caatingas. Baleia adoeceu, parecia estar  ¨azeda ¨, contaminada pela perigosa doença que ameaçava o casal , às crianças, tão acostumados e apegados à cachorra. Fabiano, o pai de família, contrariando a  mulher Sinhá Vitória, fazendo ouvidos moucos ao choro lamurioso da filharada, carrega a espingarda de socar e sai ao terreiro   em busca de Baleia para  disparar o tiro fatal. Atira,  Baleia mal ferida arrasta-se para morrer  aos poucos, escavando a terra do curral, ¨sonhando com preás gordos ¨.
Hoje, antes de disparar a espingarda, Fabiano pensaria duas vezes, avaliando o risco de matar o animal e depois  acabar preso como depositário infiel. Baleia  poderia estar penhorada aos bancos oficiais.

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