Na Espanha, aquele outono de 1975 começara
bastante friorento e mais intenso ainda na capital Madrid, sobre o altiplano
onde se destacam as cumeadas da Sierra Nevada. No soturno e sombrio Palácio de El
Pardo, o ditador Francisco Bahamonde Franco, depois de receber 38 litros de
sangue para compensar a incontrolável hemorragia, começava a exalar um odor
pútrido. Um mês e meio antes, no dia da
“Hispanidad”, 1º de outubro, ajaezou-se com o uniforme de capitão-general,
envolveu-se num grosso capote e preparou-se para ir à Praça do Oriente, onde as
hordas fascistas o esperavam para a comemoração. Já era quase um cadáver.
Ao preço sinistro de 600 mil mortos, a guerra
civil espanhola terminara em 31 de março de 1939, com a vitória dos falangistas
liderados por Franco, que tornou-se ditador, “caudillo por la gracia de Díos”, como
logo foi intitulado.
O Papa Pio XII exultou com o banho de sangue,
e telegrafou ao general vitorioso, associando indevidamente Deus, ao seu
júbilo: “Erguendo o nosso coração para o Senhor, damos-Lhe com Vossa Excelência
os nossos mais sinceros agradecimentos pela vitória da Espanha católica”. A “Espanha católica”, por obra e graça do seu
ditador, com as graças de Deus, começou a ouvir dia e noite o detonar contínuo
dos pelotões de fuzilamento, executando sumariamente mais de 150 mil
prisioneiros.
Na Praça do Oriente soprava, vindo do norte,
um vento gelado. O ditador tremia, os áulicos o amparavam, limpavam o catarro
sanguinolento que lhe escorria da boca. A turba fanática uivava ao longo da praça
extensa: “Não somos muitos, mas somos machos. Não queremos abertura, queremos
mão dura”.
Pela última vez o feroz e vingativo ditador,
ergueu o braço na saudação fascista, e, da curta arenga entrecortada pela
tosse, conseguiu-se gravar de forma entendível, apenas uma frase: “Temos de exterminar
a conspiração maçônico-esquerdista da classe política em contubérnio com a
subversão terrorista e comunista”.
Três dias antes, 27 de setembro, o moribundo
recusara-se a ouvir clamores do mundo e também um pedido do seu médico
particular, o Dr. Puigvert, para que suspendesse a execução de cinco jovens,
acusados de conspiração. Franco decidiu que seria daquela vez bonzinho, concedendo
aos condenados o direito de escolherem como deveriam morrer: se pelo garrote
vil (cruel instrumento medieval de tortura) ou por fuzilamento. Todos foram fuzilados. O “generalíssimo” espichou a sua vida infame
até o dia 19 de novembro, quando a agência Europa Press anunciou ao mundo quase
em euforia: “Franco morreu, Franco morreu, Franco morreu”.
Aquele bando desatinado que ocupou a Câmara
dos Deputados, pedindo ditadura e implorando, a generais inexistentes, que
cumpram a repugnante tarefa de instalar um regime de força, seria apenas um
aglomerado grotesco e caricato, não fosse a lembrança aterradora de tantas
tragédias que a História nos revela e, ao mesmo tempo, adverte.
Quando, na tarde azíaga de 13 de dezembro de
1968, o general-presidente Costa e Silva reuniu o seu ministério para anunciar
a edição do Ato Institucional nº 5, um dos ministros, o coronel R/1 do Exército,
Jarbas Passarinho, que era político, um homem culto e liberal, ao apoiar a
edição do monstrengo, disse com ênfase: “Às favas com os escrúpulos”. Ou seja,
admitiu que ditadura e dignidade humana são incompatíveis.
Mas há quem, até tendo escrúpulos, prefira em
algumas ocasiões jogá-los ao lixo, ou às favas. O antídoto mais eficiente
contra todas as formas de extremismo é a força da democracia. Todavia, para que
exista essa força, os políticos, as instituições, se devem fazer respeitados. Mas aí já é outra história.